Para ser mais exacta, não é na cabeça que reside o mal, isto sou eu só a pensar alto, que é para isto que uma pessoa cá vem, também me explicou a minha amiga que é sua paciente e que por decoro, não lhe posso dizer quem é.
Ando nisto desde a segunda classe que é quando uma pessoa entra na idade da razão. Até nem comecei muito cedo, já ouvi histórias de pessoas que revelaram sintomas com três ou quatro anos, mas a verdade é que embora me tenha dado o primeiro ataque na idade da razão até hoje nunca me perguntei porquê. A vida está cheia de ironias e uma delas reside nisto mesmo; se calhar estou doente há quarenta anos e nunca me apercebi disso. Mas há sempre um dia em que uma pessoa tem que enfrentar a realidade, sob o risco de ser engolida por ela e é por isso que cá vim, para ver se me ajuda a evitar essa contingência.
Primeiro foi o Paulo, que tinha cara de sonso e os olhos muito azuis. Parece-me que tinha cabelo oleoso e morava num bairro sinistro, mas desses pormenores só me lembro agora. Na altura andava era mesmo encantada com ele. Depois foi o João Pedro, que era primo de uma amiga e também tinha olhos azuis. E depois o João Carlos, meu colega do ciclo. E depois o filho do alfaiate, e depois o Miguel, um moreno de olhos grandes que morava no prédio em frente, jogava ténis e futebol e que não me ligava nenhuma. E olhe que ainda não tinha 14 anos quando o conheci. Não, não foram meus namorados; naquela época ninguém sabia como é que isso se fazia, não havia filmes nem essas coisas, dar a mão era um acto aventuroso, emocionante, que roçava a indecência, por isso o amor era sempre platónico e um sorriso cúmplice, um bilhetinho dentro do compêndio de matemática ou café tomado às escondida no café da esquina eram o suficiente para alimentar meses de paixão ardente e silenciosa.
Eu achava que com a idade isto me passava, casei, tive dois filhos, separei-me quando o meu marido perdeu o interesse por mim e olhe, há dez anos que continuo nisto. Agora são os colegas da empresa, o meu vizinho do sexto esquerdo que a mulher deixou com três filhos, o meu advogado que também tem uns olhos grandes e joga ténis e outro dia, veja só ao estado a que cheguei, dei por mim a fixar o olhar no rapaz que é caixa no banco.
Deve mesmo ter uma doença, sou viciada em amor. Mas é um amor platónico, impossível que quase nunca se concretiza. A minha amiga diz que já sofreu do mesmo mal e que o senhor doutor a tem ajudado e é para isso que estou aqui, porque nunca percebi se é o coração que manda na cabeça ou vice-versa e já agora gostava de e tentar resolver esta dependência que me alimenta os sonhos e me impede de viver.
By, Margarida Rebelo Pinto.